segunda-feira, 27 de agosto de 2012

Cotidiano...

 O cotidiano transforma horas vagas, em deveres.
 Na longa marginal, suor, olhar alheio, marcha lenta...
 Abro o porta-luvas, dentro, um Quintana me orienta:
“A vida é uma tarefa que eu levo para fazer em casa."

Sigo reto, freio, reduzo, vejo luzes... Entre mil afazeres...
Desprendo-me do silêncio, emanando impropérios
                                                                         pelos cruzamentos.
Deste modo, quando em mim, revejo o passado em asas...
Sei que menino, planejei vôos altos, deslumbramento.

A  cada esquina, um filho parido abre os olhos,
nas mãos humildes, alegria parca, numa moeda como esmola.
A hora do rush é um suplício, peso nos ombros, cansaço...
Coço a vista, fome, rotina, enfado.
                                                                   ...Este engarrafamento...

Ouço, o que a vida tinha me reservado para [às SEIS] da tarde
Lá fora, todas as pessoas movem-se em busca do prazer...
Insistente, você me liga e diz sem demora o que está acontecendo...
Eu nunca entendo o que você tenta me dizer, assim, exatamente...

Apenas ouço em sua ligação: - Que meu filho irá nascer!!!
Posso não entender o mundo, sequer a vida. Destino, sobretudo.
Posso não ser um (deus), mas a escuto como letra de música,
                                                                          [que suavemente invade...]
E sinto em meu sangue, 
                      um turbilhão de vida, renovar-se agora,
                                                                           tão pleno e explicitamente...

Marco Rocca.


Amigos é com grande prazer que compartilho com vocês essa prosa
poética, feita pelo amigo Marco Rocca em parceria com seu amigo Lou James! Eu acompanho o trabalho dele há algum tempo através do blog Versos em horas e no Recanto das Letras.

Obrigada Marco! Adorei compartilhar um pouco desse seu sentir!!! E sempre que quiser prosear sua poesia, esse Cantinho estará aberto pra você!
 

domingo, 12 de agosto de 2012

Motivo da rosa...

A rosa, bela Infanta das sete saias
e cuja estirpe não lhe rouba, entanto,
o ar de menina, o recatado encanto
da mais humilde de suas aias,
a rosa, essa presença feminina,
que é toda feita de perfume e alma,
que tanto excita como tanto acalma,
a rosa... é como estar junto da gente
um corpo cuja posse se demora
- brutal que o tenhas nesta mesma hora,
em sua virgindade inexperiente...
rosa, ó fiel promessa de ventura
em flor... rosa paciente, ardente, pura!

Mário Quintana.

quarta-feira, 1 de agosto de 2012

Pequenas Epifanias...

Dois ou três almoços, uns silêncios.
Fragmentos disso que chamamos de “minha vida’:
Há alguns dias, Deus — ou isso que chamamos assim,
Tão descuidadamente, de Deus— enviou-me certo presente ambíguo: uma possibilidade de amor. Ou disso que chamamos, também com descuido e alguma pressa, de amor. E você sabe a que me refiro.
Antes que pudesse me assustar e, depois do susto, hesitar entre ir ou não ir, querer ou não querer—eu já estava lá dentro. E estar dentro daquilo era bom. Não me entenda mal — não aconteceu qualquer intimidade dessas que você certamente imagina. Na verdade, não aconteceu quase nada. Dois ou três almoços, uns silêncios. Fragmentos disso que chamamos, com aquele mesmo descuido, de “minha vida”. Outros fragmentos, daquela “outra vida”. De repente cruzadas ali, por puro mistério, sobre as toalhas brancas e os copos de vinho ou água, entre casquinhas de pão e cinzeiros cheios que os garçons rapidamente esvaziavam para que nos sentíssemos limpos. E nos sentíamos.
Por trás do que acontecia, eu redescobria magias sem susto algum. E de repente me sentia protegido, você sabe como: a vida toda, esses pedacinhos desconexos, se armavam de outro jeito, fazendo sentido. Nada de mau me aconteceria, tinha certeza, enquanto estivesse dentro do campo magnético daquela outra pessoa. Os olhos da outra pessoa me olhavam e me reconheciam como outra pessoa, e suavemente faziam perguntas, investigavam terrenos: ah você não come açúcar, ah você é do signo de Libra. Traçando esboços, os dois. Tateando traços difusos, vagas promessas.
Nunca mais sair do centro daquele espaço para as duras ruas anônimas. Nunca mais sair daquele colo quente que é ter uma face para outra pessoa que também tem uma face para você, no meio da tralha desimportante e sem rosto de cada dia atravancando o coração. Mas no quarto, quinto dia, um trecho obsessivo do conto de Clarice Lispector—Tentação—na cabeça estonteada de encanto: “Mas ambos estavam comprometidos. Ele, com sua natureza aprisionada. Ela, com sua infância impossível”. Cito de memória, não sei se correto. Fala no encontro de uma menina ruiva, sentada num degrau às três da tarde, com um cão basset também ruivo, que passa acorrentado. Ele pára. Os dois se olham. Cintilam, prometidos. A dona o puxa. Ele se vai. E nada acontece.
De mais a mais, eu não queria. Seria preciso forjar climas, insinuar convites, servir vinhos, acender velas, fazer caras. Para talvez ouvir não. A não ser que soprasse tanto vento que velejasse por si. Não velejou. Além disso, sem perceber, eu estava dentro da aprendizagem solitária do não-pedir. Só compreendi dias depois, quando um amigo me falou — descuidado, também—em pequenas epifanias. Miudinhas, quase pífias revelações de Deus feito jóias encravadas no dia-a-dia.
Era isso — aquela outra vida, inesperadamente misturada à minha, olhando a minha opaca vida com os mesmos olhos atentos com que eu a olhava: uma pequena epifania. Em seguida vieram o tempo, a distância, a poeira soprando. Mas eu trouxe de lá a memória de qualquer coisa macia que tem me alimentado nestes dias seguintes de ausência e fome. Sobretudo à noite, aos domingos. Recuperei um jeito de fumar olhando para trás das janelas, vendo o que ninguém veria.
Atrás das janelas, retomo esse momento de mel e sangue que Deus colocou tão rápido, e com tanta delicadeza, frente aos meus olhos há tanto tempo incapazes de ver: uma possibilidade de amor. Curvo a cabeça, agradecido. E se estendo a mão, no meio da poeira de dentro de mim, posso tocar também em outra coisa. Essa pequena epifania. Com corpo e face. Que reponho devagar, traço a traço, quando estou só e tenho medo. Sorrio, então. E quase paro de sentir fome.

O Estado de S. Paulo, 22/4/1986.

Caio Fernando Abreu.