sábado, 21 de dezembro de 2013

O que me dói...

O que me dói não é 
O que há no coração 
Mas essas coisas lindas 
Que nunca existirão... 
São as formas sem forma 
Que passam sem que a dor 
As possa conhecer 
Ou as sonhar o amor.
 São como se a tristeza 
Fosse árvore e, uma a uma, 
Caíssem suas folhas 
Entre o vestígio e a bruma. 

Fernando Pessoa.

domingo, 4 de agosto de 2013

Vivemos adormecidos num mundo sonolento...

"Vivemos adormecidos num mundo sonolento.
Mas se um 'TU' murmurar ao nosso ouvido,
é isso o que sacode as pessoas: o 'EU' desperta graças ao 'TU'.
A eficácia espiritual de duas consciências simultâneas,
reunidas na consciência do seu encontro,
escapa subitamente à casualidade viscosa e contínua das coisas.
O encontro cria-nos:
não eramos nada - ou nada mais que coisas - antes de estarmos juntos"

Gaston Bachelard.

sexta-feira, 19 de julho de 2013

Ando muito completo de vazios...

Ando muito completo de vazios.
Meu órgão de morrer me predomina.
Estou sem eternidades.
Não posso mais saber quando amanheço ontem.
Está rengo de mim o amanhecer.
Ouço o tamanho oblíquo de uma folha.
Atrás do ocaso fervem os insetos.
Enfiei o que pude dentro de um grilo o meu destino.
Essas coisas me mudam para cisco.
A minha independência tem algemas.

Manoel de Barros.

domingo, 2 de junho de 2013

Quando olho para mim…

Quando olho para mim não me percebo.
Tenho tanto a mania de sentir
Que me extravio às vezes ao sair
Das próprias sensações que eu recebo.
O ar que respiro, este licor que bebo,
Pertencem ao meu modo de existir,
E eu nunca sei como hei de concluir
As sensações que a meu pesar concebo.
Nem nunca, propriamente reparei,
Se na verdade sinto o que sinto. Eu
Serei tal qual pareço em mim? Serei
Tal qual me julgo verdadeiramente?
Mesmo ante as sensações sou um pouco ateu,
Nem sei bem se sou eu quem em mim sente.

Alvaro de Campos.

quarta-feira, 15 de maio de 2013

Se te pareço noturna e imperfeita...

Se te pareço noturna e imperfeita
Olha-me de novo. Porque esta noite
Olhei-me a mim, como se tu me olhasses.
E era como se a água desejasse
Escapar de sua casa que é o rio
E deslizando apenas, nem tocar a margem.
Te olhei. E há um tempo
Entendo que sou terra.
Há tanto tempo espero
Que o teu corpo de água mais fraterno
Se estenda sobre o meu. Pastor e nauta
Olha-me de novo. Com menos altivez.
E mais atento.

Hilda Hilst.

domingo, 28 de abril de 2013

As Coisas Essenciais...

Leia este poema bem devagar, pois cada imagem merece a preguiça do olhar.

“No mistério do sem-fim
equilibra-se um planeta.
E, no planeta, um jardim
e, no jardim, um canteiro:
no canteiro, uma violeta
e, sobre ela, o dia inteiro
entre o planeta e o sem-fim
a asa de uma borboleta”.

É pequeno, mas diz tudo. Nada lhe falta, Uni-verso. Nenhuma palavra lhe poderia ser acrescentada. Nenhuma palavra lhe poderia ser tirada. Assim se faz um poema, com palavras essenciais. O poema diz o essencial.
O essencial é aquilo que se nos fosse roubado, morreríamos. O que não pode ser esquecido. Substância do nosso corpo e da nossa alma.(...)
O que é essencial? Os filósofos antigos reduziam o essencial a quatro elementos fundamentais: a água, a terra, o ar e o fogo. Concordo com eles. Pensavam estar fazendo cosmologia, mas estavam fazendo poesia. Sabiam dos segredos da alma. Pois é disto que somos feitos. Posso imaginar um mundo sem que eu sinta por isto, nenhuma tristeza especial. Mas não posso pensar um mundo sem a chuva que caí, sem regatos cristalinos, sem o mar misterioso… Não posso imaginar um mundo sem o calor do sol que agrada a pele e colore o poente, sem o fogo que ilumina e aquece… Não posso imaginar um mundo sem o vento onde navegam as nuvens, os pássaros e o cheiro das magnólias… Não posso imaginar um mundo sem a terra prenhe de vida onde as plantas mergulham suas raízes… São estes os amantes com que a vida faz amor e engravida, de onde brota toda a exuberância e mistério deste mundo, nosso lar. Não preciso de deuses mais belos que estes.
Ouço, pelo mundo inteiro, em meio ao barulho das dez mil coisas que fazem a nossa loucura, as vozes-poema daqueles que percebem o essencial. Elas dizem uma coisa somente: “Este mundo maravilhoso precisa ser preservado”. Mas ouço também a voz sombria dos que perguntam: “Conseguiremos?”.

Rubem Alves.

In: Palavras para desatar nós. p. 54

sábado, 20 de abril de 2013

A maior riqueza do homem...

A maior riqueza do homem
é a sua incompletude.
Nesse ponto sou abastado.
Palavras que me aceitam como sou - eu não aceito.
Não agüento ser apenas um sujeito que abre portas,
que puxa válvulas, que olha o relógio,
que compra pão às 6 horas da tarde,
que vai lá fora, que aponta lápis,
que vê a uva etc. etc.
Perdoai
Mas eu preciso ser Outros.
Eu penso renovar o homem usando borboletas.

Manoel de Barros.

sexta-feira, 12 de abril de 2013

Dever de Sonhar...

Eu tenho uma espécie de dever,
dever de sonhar, de sonhar sempre,
pois sendo mais do que um espetáculo de mim mesmo,
eu tenho que ter o melhor espetáculo que posso.
E, assim, me construo a ouro e sedas, em salas
supostas, invento palco, cenário para viver o meu sonho
entre luzes brandas e músicas invisíveis.

Fernando Pessoa

domingo, 31 de março de 2013

Na primeira noite...

Na primeira noite, eles se aproximam e colhem uma flor de nosso jardim. E não dizemos nada.
Na segunda noite, já não se escondem, pisam as flores, matam nosso cão. E não dizemos nada.
Até que um dia, o mais frágil deles, entra sozinho em nossa casa, rouba-nos a lua, e, conhecendo nosso medo, arranca-nos a voz da garganta. E porque não dissemos nada, já não podemos dizer nada.

Vladimir Maiakovski.

sexta-feira, 22 de março de 2013

Feliz quem não exige da vida...

Feliz quem não exige da vida mais do que ela espontaneamente lhe dá, guiando-se pelo instinto
dos gatos, que buscam o sol quando há sol,
e quando não há sol o calor, onde quer que esteja.
Feliz quem abdica da sua personalidade pela
imaginação, e se deleita na contemplação das vidas
alheias, vivendo, não todas as impressões, mas o espetáculo externo de todas as impressões.
Feliz, por fim, esse que abdica de tudo, e a quem,
porque abdicou de tudo, nada pode ser tirado nem diminuído.

Do Livro do Desassossego
 Bernardo Soares.

domingo, 10 de março de 2013

Domingo é dia de ecos quentes...

 Domingo é dia de ecos quentes, secos,
e em toda a parte zumbidos de abelhas e vespas,
gritos de pássaros e o longínquo das marteladas compassadas - de onde vêm os ecos de domingo?
Eu que detesto domingo por ser oco.

Clarice Lispector.

quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

Um dia perfeito...

Hoje queria um dia
feito de horas de oferecer.
Porque há dias diferentes.
Dias especiais
em que queremos encomendar o sol,
a luz do horizonte, a doçura do ar.
Queria oferecer um dia hoje.
Um dia perfeito.
Embrulhado em momentos guardados.
Talvez com uma fita cor de certeza
calma, e um laço pleno de voltas cúmplices.
Só um dia.
Dado assim...

Mário Quintana

domingo, 24 de fevereiro de 2013

Para ler poesia...

Não basta saber ler para ler poesia.
Ler poesia é uma arte. Exige que o leitor
se coloque numa posição especial de alma.
O segredo da poesia está na música da leitura.
Mais do que uma arte: é um ato de bruxedo.
O leitor invoca um mistério que se encontra
nos interstícios das palavras do poeta.
Essas palavras estão dentro dele mesmo.
O poema faz-me ouvir um poema que está
dentro de mim.
Esse poema que está dentro de mim é
um pedaço do mim.
Muitas pessoas têm hábitos suínos de leitura.
Lêem como os porcos devoram a lavagem.
Tudo é igual, não há pausas, tudo com pressa.
Romain Rolland se referia a um sentimento que ele não tinha, mas não podia descrever, pelo que lhe deu o nome de “sentimento oceânico”.
Você já experimentou ficar boiando no mar?
O corpo todo solto, sem fazer nada, nenhum movimento,
subindo e descendo ao sabor das ondas?
Pois é assim que se lê poesia: flutuando ao sabor das palavras, sem pressa, em voz alta, poesia é música.
São falas do coração. Por favor: não tente entender.
Música não é para ser entendida. é para ser ouvida.
Poesia não é para ser entendida.
É para ser lida em voz alta.

Rubem Alves.

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

A passagem das horas...

Vi todas as coisas, e maravilhei-me de tudo,
Mas tudo ou sobrou ou foi pouco
 – não sei qual – e eu sofri.
Vivi todas as emoções, todos os pensamentos,
todos os gestos,
E fiquei tão triste como se tivesse
querido vivê-los e não conseguisse.
Amei e odiei como toda gente,
Mas para toda a gente isso foi normal e instintivo,
E para mim foi sempre a exceção,
o choque, a válvula, o espasmo“.

Álvaro de Campos.

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013

O Futuro...

"Sei que me espera qualquer coisa
Mas não sei que coisa me espera.
Como um quarto escuro
Que eu temo quando creio que nada temo...
Mas só o temo, por ele, temo em vão.
O mistério da morte a mim o liga
Ao brutal fim do meu poema".

Álvaro de Campos.

domingo, 27 de janeiro de 2013

Noções...

Entre mim e mim, há vastidões bastantes
para a navegação dos meus desejos afligidos.
Descem pela água minhas naves revestidas de espelhos.
Cada lâmina arrisca um olhar,
e investiga o elemento que a atinge.
Mas, nesta aventura do sonho exposto à correnteza,
só recolho o gosto infinito das respostas
que não se encontram.
Virei-me sobre a minha própria experiência,
e contemplei-a.
Minha virtude era esta errância por mares contraditórios,
e este abandono para além da felicidade e da beleza.
Ó meu Deus, isto é minha alma: qualquer coisa
que flutua sobre este corpo efêmero e precário,
como o vento largo do oceano
sobre a areia passiva e inúmera...


Cecília Meireles.

sexta-feira, 18 de janeiro de 2013

Sentir...

Sentir tudo de todas as maneiras, Viver tudo de todos os lados, Ser a mesma coisa de todos os modos possíveis ao mesmo tempo, Realizar em si toda a humanidade de todos os momentos Num só momento difuso, profuso, completo e longínquo. Eu quero ser sempre aquilo com quem simpatizo, Eu torno-me sempre, mais tarde ou mais cedo, Aquilo com quem simpatizo, seja uma pedra ou uma ânsia, Seja uma flor ou uma idéia abstrata, Seja uma multidão ou um modo de compreender Deus. E eu simpatizo com tudo, vivo de tudo em tudo.”

Álvaro de Campos.

sábado, 5 de janeiro de 2013

Mudam-se os tempos...

Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,
muda-se o ser, muda-se a confiança;
todo o Mundo é composto de mudança,
tomando sempre novas qualidades.
Continuamente vemos novidades,
diferentes em tudo da esperança;
do mal ficam as mágoas na lembrança,
e do bem (se algum houve), as saudades.
O tempo cobre o chão de verde manto,
que já coberto foi de neve fria,
e, enfim, converte em choro o doce canto.
E, afora este mudar-se cada dia,
outra mudança faz de mor espanto,
que não se muda já como soía.

Luís de Camões.