domingo, 23 de março de 2014

O amor no éter...

Há dentro de mim uma paisagem 
entre meio-dia e duas horas da tarde. 
Aves pernaltas, os bicos mergulhados na água,  
entram e não neste lugar de memória, 
uma lagoa rasa com caniço na margem. 
Habito nele, quando os desejos do corpo, 
a metafísica, exclamam: 
como és bonito! 
Quero escrever-te até encontrar 
onde segregas tanto sentimento. 
Pensas em mim, teu meio-riso secreto 
atravessa mar e montanha, 
me sobressalta em arrepios, 
o amor sobre o natural. 
O corpo é leve como a alma, 
os minerais voam como borboletas. 
Tudo deste lugar 
entre meio-dia e duas horas da tarde.

Adélia Prado.

domingo, 9 de março de 2014

A lucidez perigosa...

Estou sentindo uma clareza tão grande 
que me anula como pessoa atual e comum:  
é uma lucidez vazia, como explicar?  
Assim como um cálculo matemático perfeito  
do qual, no entanto, não se precise.
Estou por assim dizer   
vendo claramente o vazio.  
E nem entendo aquilo que entendo:  
pois estou infinitamente maior que eu mesma,  
e não me alcanço.
Além do que:  que faço dessa lucidez?  
Sei também que esta minha lucidez  
pode-se tornar o inferno humano 
– já me aconteceu antes.
– em termos de nossa diária 
e permanente acomodação 
resignada à irrealidade – 
essa clareza de realidade 
é um risco.
apagai, pois, minha flama, Deus,
porque ela não me serve para viver os dias
Ajudai-me a de novo consistir
dos modos possíveis.
Eu consisto,
eu consisto,
amém.
Clarice Lispector.

sábado, 1 de março de 2014

Tu eras também uma pequena folha...


Tu eras também uma pequena folha
que tremia no meu peito.
O vento da vida pôs-te ali.
A princípio não te vi: não soube
que ias comigo,
até que as tuas raízes
atravessaram o meu peito,
se uniram aos fios do meu sangue,
falaram pela minha boca,
floresceram comigo.


Pablo Neruda.