sábado, 18 de julho de 2015

Quando Eu não te Tinha...

Quando eu não te tinha 
Amava a Natureza como um monge calmo a Cristo. 
Agora amo a Natureza 
Como um monge calmo à Virgem Maria, 
Religiosamente, a meu modo, como dantes, 
Mas de outra maneira mais comovida e próxima ... 
Vejo melhor os rios quando vou contigo 
Pelos campos até à beira dos rios; 
Sentado a teu lado reparando nas nuvens 
Reparo nelas melhor — 
Tu não me tiraste a Natureza ... 
Tu mudaste a Natureza ... 
Trouxeste-me a Natureza para o pé de mim, 
Por tu existires vejo-a melhor, mas a mesma, 
Por tu me amares, amo-a do mesmo modo, mas mais, 
Por tu me escolheres para te ter e te amar, 
Os meus olhos fitaram-na mais demoradamente 
Sobre todas as cousas. 
Não me arrependo do que fui outrora 
Porque ainda o sou. 
Só me arrependo de outrora te não ter amado.

Alberto Caeiro.

quarta-feira, 1 de julho de 2015

Rifa-se um coração...

Rifa-se um coração quase novo. 
Um coração idealista. 
Um coração como poucos. 
Um coração à moda antiga. 
Um coração moleque que insiste 
em pregar peças no seu usuário. 
Rifa-se um coração que na realidade 
está um pouco usado, meio calejado, 
muito machucado e que teima em 
alimentar sonhos, e cultivar ilusões. 
Um pouco inconsequente que nunca 
desiste de acreditar nas pessoas. 
Um leviano e precipitado, 
coração que acha que Tim Maia 
estava certo quando escreveu... 
"não quero dinheiro, eu quero amor sincero, 
é isso que eu espero...". 
Um idealista... Um verdadeiro sonhador... 
Rifa-se um coração que nunca aprende. 
Que não endurece, e mantém sempre viva
 a esperança de ser feliz, sendo simples e natural. 
Um coração insensato que comanda o racional 
sendo louco o suficiente para se apaixonar.
 Um furioso suicida que vive procurando 
relações e emoções verdadeiras. 
Rifa-se um coração que insiste em 
cometer sempre os mesmos erros. 
Esse coração que erra, briga, se expõe. 
Perde o juízo por completo em nome de causas e paixões. 
Sai do sério e, às vezes revê suas posições 
arrependido de palavras e gestos. 
Este coração tantas vezes incompreendido. 
Tantas vezes provocado. Tantas vezes impulsivo. 
Rifa-se este desequilibrado emocional que, 
abre sorrisos tão largos que quase dá pra engolir as orelhas, 
mas que também arranca lágrimas e faz murchar o rosto. 
Um coração para ser alugado, ou mesmo utilizado 
por quem gosta de emoções fortes. 
Um órgão abestado indicado apenas para quem
quer viver intensamente e, contra indicado para 
os que apenas pretendem passar pela vida 
matando o tempo, defendendo-se das emoções. 
Rifa-se um coração tão inocente que se mostra 
sem armaduras e deixa louco o seu usuário. 
Um coração que quando parar de bater 
ouvirá o seu usuário dizer para São Pedro 
na hora da prestação de contas: 
" O Senhor poder conferir", eu fiz tudo certo, 
só errei quando coloquei sentimento. 
Só fiz bobagens e me dei mal
quando ouvi este louco coração de criança
que insiste em não endurecer e, se recusa a envelhecer". 
Rifa-se um coração, ou mesmo troca-se por outro 
que tenha um pouco mais de juízo. 
Um órgão mais fiel ao seu usuário. 
Um amigo do peito que não maltrate 
tanto o ser que o abriga. 
Um coração que não seja tão inconsequente. 
Rifa-se um coração cego, surdo e mudo, 
mas que incomoda um bocado. 
Um verdadeiro caçador de aventuras que, 
ainda não foi adotado, provavelmente, 
por se recusar a cultivar ares selvagens 
ou racionais, por não querer perder o estilo. 
Oferece-se um coração vadio, sem raça, sem pedigree. 
Um simples coração humano. 
Um impulsivo membro de comportamento 
até meio ultrapassado. 
Um modelo cheio de defeitos que, 
mesmo estando fora do mercado, 
faz questão de não se modernizar, 
mas vez por outra, constrange 
o corpo que o domina. 
Um velho coração que convence seu usuário 
a publicar seus segredos e, a ter a petulância 
de se aventurar como poeta.

Ricardo Labatt.