segunda-feira, 28 de dezembro de 2015

Hoje Tomei a Decisão de Ser Eu

Hoje, ao tomar de vez a decisão de ser Eu, 
de viver à altura do meu mister, 
e, por isso, de desprezar a ideia do reclame, 
e plebeia sociabilizacão de mim, do Interseccionismo, 
reentrei de vez, de volta da minha viagem 
de impressões pelos outros, 
na posse plena do meu Génio 
e na divina consciência da minha Missão. 
Hoje só me quero tal qual meu carácter nato 
quer que eu seja; e meu Génio, com ele nascido, 
me impõe que eu não deixe de ser. 
Atitude por atitude, melhor a mais nobre, 
a mais alta e a mais calma. 
Pose por pose, a pose de ser o que sou. 
Nada de desafios à plebe, 
nada de girândolas para o riso 
ou a raiva dos inferiores. 
A superioridade não se mascara de palhaço; 
é de renúncia e de silêncio que se veste. 
O último rasto de influência dos outros 
no meu carácter cessou com isto. 
Reconheci — ao sentir que podia 
e ia dominar o desejo intenso e infantil 
de « lançar o Interseccionismo»
 — a tranquila posse de mim. 
Um raio hoje deslumbrou-me de lucidez. 
Nasci.


Fernando Pessoa, 'Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação'

domingo, 1 de novembro de 2015

O Amor É uma Companhia...

O amor é uma companhia. 
Já não sei andar só pelos caminhos, 
Porque já não posso andar só. 
Um pensamento visível faz-me andar mais depressa 
E ver menos, e ao mesmo tempo gostar bem de ir vendo tudo. 
Mesmo a ausência dela é uma coisa que está comigo. 
E eu gosto tanto dela que não sei como a desejar. 
Se a não vejo, imagino-a e sou forte como as árvores altas. 
Mas se a vejo tremo, não sei o que é feito do que sinto na ausência dela. 
Todo eu sou qualquer força que me abandona. 
Toda a realidade olha para mim como um girassol com a cara dela no meio. 

Alberto Caeiro.

domingo, 11 de outubro de 2015

Dá-me a tua mão...

Dá-me a tua mão: 
Vou agora te contar 
como entrei no inexpressivo 
que sempre foi a minha busca cega e secreta. 
De como entrei 
naquilo que existe entre o número um e o número dois, 
de como vi a linha de mistério e fogo, 
e que é linha sub-reptícia.
Entre duas notas de música existe uma nota, 
entre dois fatos existe um fato, 
entre dois grãos de areia por mais juntos que estejam 
existe um intervalo de espaço, 
existe um sentir que é entre o sentir 
- nos interstícios da matéria primordial 
está a linha de mistério e fogo 
que é a respiração do mundo, 
e a respiração contínua do mundo 
é aquilo que ouvimos 
e chamamos de silêncio

Clarice Lispector.

domingo, 6 de setembro de 2015

O Anel de Vidro...

Aquele pequenino anel que tu me deste, 
– Ai de mim – era vidro e logo se quebrou… 
Assim também o eterno amor que prometeste, 
- Eterno! era bem pouco e cedo se acabou. 
Frágil penhor que foi do amor que me tiveste, 
Símbolo da afeição que o tempo aniquilou, 
– Aquele pequenino anel que tu me deste,
– Ai de mim – era vidro e logo se quebrou… 
Não me turbou, porém, o despeito que investe 
Gritando maldições contra aquilo que amou. 
De ti conservo no peito a saudade celeste… 
Como também guardei o pó que me ficou 
Daquele pequenino anel que tu me deste…

Manuel Bandeira.

sábado, 8 de agosto de 2015

As mãos de meu pai...

As tuas mãos tem grossas veias como cordas azuis
sobre um fundo de manchas já cor de terra
— como são belas as tuas mãos —
pelo quanto lidaram, acariciaram ou fremiram
na nobre cólera dos justos...

Porque há nas tuas mãos, meu velho pai,
essa beleza que se chama simplesmente vida.
E, ao entardecer, quando elas repousam
nos braços da tua cadeira predileta,
uma luz parece vir de dentro delas...

Virá dessa chama que pouco a pouco, longamente,
vieste alimentando na terrível solidão do mundo,
como quem junta uns gravetos e tenta acendê-los contra o vento?
Ah, Como os fizeste arder, fulgir,
com o milagre das tuas mãos.

E é, ainda, a vida
que transfigura das tuas mãos nodosas...
essa chama de vida — que transcende a própria vida...
e que os Anjos, um dia, chamarão de alma...

Mario Quintana

sábado, 18 de julho de 2015

Quando Eu não te Tinha...

Quando eu não te tinha 
Amava a Natureza como um monge calmo a Cristo. 
Agora amo a Natureza 
Como um monge calmo à Virgem Maria, 
Religiosamente, a meu modo, como dantes, 
Mas de outra maneira mais comovida e próxima ... 
Vejo melhor os rios quando vou contigo 
Pelos campos até à beira dos rios; 
Sentado a teu lado reparando nas nuvens 
Reparo nelas melhor — 
Tu não me tiraste a Natureza ... 
Tu mudaste a Natureza ... 
Trouxeste-me a Natureza para o pé de mim, 
Por tu existires vejo-a melhor, mas a mesma, 
Por tu me amares, amo-a do mesmo modo, mas mais, 
Por tu me escolheres para te ter e te amar, 
Os meus olhos fitaram-na mais demoradamente 
Sobre todas as cousas. 
Não me arrependo do que fui outrora 
Porque ainda o sou. 
Só me arrependo de outrora te não ter amado.

Alberto Caeiro.

quarta-feira, 1 de julho de 2015

Rifa-se um coração...

Rifa-se um coração quase novo. 
Um coração idealista. 
Um coração como poucos. 
Um coração à moda antiga. 
Um coração moleque que insiste 
em pregar peças no seu usuário. 
Rifa-se um coração que na realidade 
está um pouco usado, meio calejado, 
muito machucado e que teima em 
alimentar sonhos, e cultivar ilusões. 
Um pouco inconsequente que nunca 
desiste de acreditar nas pessoas. 
Um leviano e precipitado, 
coração que acha que Tim Maia 
estava certo quando escreveu... 
"não quero dinheiro, eu quero amor sincero, 
é isso que eu espero...". 
Um idealista... Um verdadeiro sonhador... 
Rifa-se um coração que nunca aprende. 
Que não endurece, e mantém sempre viva
 a esperança de ser feliz, sendo simples e natural. 
Um coração insensato que comanda o racional 
sendo louco o suficiente para se apaixonar.
 Um furioso suicida que vive procurando 
relações e emoções verdadeiras. 
Rifa-se um coração que insiste em 
cometer sempre os mesmos erros. 
Esse coração que erra, briga, se expõe. 
Perde o juízo por completo em nome de causas e paixões. 
Sai do sério e, às vezes revê suas posições 
arrependido de palavras e gestos. 
Este coração tantas vezes incompreendido. 
Tantas vezes provocado. Tantas vezes impulsivo. 
Rifa-se este desequilibrado emocional que, 
abre sorrisos tão largos que quase dá pra engolir as orelhas, 
mas que também arranca lágrimas e faz murchar o rosto. 
Um coração para ser alugado, ou mesmo utilizado 
por quem gosta de emoções fortes. 
Um órgão abestado indicado apenas para quem
quer viver intensamente e, contra indicado para 
os que apenas pretendem passar pela vida 
matando o tempo, defendendo-se das emoções. 
Rifa-se um coração tão inocente que se mostra 
sem armaduras e deixa louco o seu usuário. 
Um coração que quando parar de bater 
ouvirá o seu usuário dizer para São Pedro 
na hora da prestação de contas: 
" O Senhor poder conferir", eu fiz tudo certo, 
só errei quando coloquei sentimento. 
Só fiz bobagens e me dei mal
quando ouvi este louco coração de criança
que insiste em não endurecer e, se recusa a envelhecer". 
Rifa-se um coração, ou mesmo troca-se por outro 
que tenha um pouco mais de juízo. 
Um órgão mais fiel ao seu usuário. 
Um amigo do peito que não maltrate 
tanto o ser que o abriga. 
Um coração que não seja tão inconsequente. 
Rifa-se um coração cego, surdo e mudo, 
mas que incomoda um bocado. 
Um verdadeiro caçador de aventuras que, 
ainda não foi adotado, provavelmente, 
por se recusar a cultivar ares selvagens 
ou racionais, por não querer perder o estilo. 
Oferece-se um coração vadio, sem raça, sem pedigree. 
Um simples coração humano. 
Um impulsivo membro de comportamento 
até meio ultrapassado. 
Um modelo cheio de defeitos que, 
mesmo estando fora do mercado, 
faz questão de não se modernizar, 
mas vez por outra, constrange 
o corpo que o domina. 
Um velho coração que convence seu usuário 
a publicar seus segredos e, a ter a petulância 
de se aventurar como poeta.

Ricardo Labatt.

segunda-feira, 1 de junho de 2015

Canções...


Quero um dia para chorar.
Mas a vida vai tão depressa!
e é preciso deixar contida
a tristeza, para que a vida,
que acaba quando mal começa,
tenha tempo, de se acabar.

Não quero amor, não quero amar…
Não quero nenhuma promessa
nem mesmo para ser cumprida.
Não quero a esperança partida,
nem nada de quanto regressa.
Quero um dia para chorar.

Quero um dia para chorar.
Dia de desprender-me dessa
aventura mal entendida.
sobre os espelhos sem saída
em que jaz minha face impressa.
Chorar sem protesto. Chorar.

Cecília Meireles.

domingo, 10 de maio de 2015

Para sempre...

Por que Deus permite que as mães vão-se embora?
Mãe não tem limite, é tempo sem hora,
luz que não apaga quando sopra o vento
e chuva desaba, veludo escondido
na pele enrugada, água pura, ar puro,
puro pensamento.
Morrer acontece
com o que é breve e passa sem deixar vestígio.
Mãe, na sua graça,
é eternidade.
Por que Deus se lembra - mistério profundo - de tirá-la um dia?
Fosse eu Rei do Mundo, baixava uma lei:
Mãe não morre nunca, mãe ficará sempre junto de seu filho
e ele, velho embora, será pequenino feito grão de milho.

Carlos Drummond de Andrade.

domingo, 26 de abril de 2015

Acordo de noite...

Acordo de noite subitamente, 
E o meu relógio ocupa a noite toda. 
Não sinto a Natureza lá fora. 
O meu quarto é uma cousa escura com paredes vagamente brancas. 
Lá fora há um sossego como se nada existisse. 
Só o relógio prossegue o seu ruído. 
E esta pequena cousa de engrenagens que está em cima da minha mesa 
Abafa toda a existência da terra e do céu... 
Quase que me perco a pensar o que isto significa, 
Mas estaco, e sinto-me sorrir na noite com os cantos da boca, 
Porque a única cousa que o meu relógio simboliza ou significa 
Enchendo com a sua pequenez a noite enorme 
É a curiosa sensação de encher a noite enorme 
Com a sua pequenez... 

 Fernando Pessoa.

.

domingo, 5 de abril de 2015

Sobre o amor...

O amor não tem outro desejo 
além de satisfazer a si mesmo.
Mas se vós amais e precisais ter desejos, 
que sejam estes os vossos desejos:
Derreter e ser como um riacho 
que corre e canta sua melodia para a noite.
Conhecer a dor do carinho demasiado.
Ser ferido pela vossa própria compreensão do amor, 
e sangrar por vossa própria vontade e com alegria.
Acordar ao amanhecer com o coração leve
e agradecer por mais um dia de amor;
Descansar ao meio dia e meditar sobre o êxtase do amor;
Voltar para casa ao entardecer com gratidão;
E então dormir com uma prece 
ao bem-amado em vossos corações
e uma canção de louvor em vossos lábios."

Gibran Khalil Gibran.

sábado, 21 de março de 2015

Não me afastar de você...


Disseste tudo ao dizer: 
Quando a ausência de mim
Fizer presença em meu ser, 
Visitarei a mim mesmo,
Para não me afastar de você. 
Quando o peso do dever
Em mim soterrar a alma 
Entre os escombros da vida, 
Quero flutuar qual pluma
Na leve brisa da calma. 
Quando o dizer tiver o poder
De revelar o que não quero,
Paro a pluma, guardo a voz,
Me rebelo no silêncio
Para me manter sincero.
Antes da noção do certo
Se revelar um engano,
Saio do cotidiano: 
Adentro em outras rotinas,
Noutros mares vou pescar. 
Não quero porto seguro, 
Só âncora, vela e mar. 
Âncora para ser meu porto, 
Vela para me levar, 
Mar para, no litoral, 
As minhas ondas quebrar.


Rubem Alves.


domingo, 22 de fevereiro de 2015

Eu sou...

"Eu sou uma eterna apaixonada por palavras. 
Música. E pessoas inteiras. Não me importa 
seu sobrenome, onde você nasceu, quanto 
carrega no bolso. Pessoas vazias são chatas 
e me dão sono. Gosto de quem mete a cara,
 arrisca o verso, desafia a vida.
 Eu sou criança. E vou crescer assim. 
Gosto de abraçar apertado, sentir alegria inteira, 
inventar mundos, inventar amores. 
O simples me faz rir, 
o complicado me aborrece".

Caio Fernando de Abreu.

sábado, 14 de fevereiro de 2015

Solidão?

Solidão? O que acontece é que a gente 
procura os outros para se livrar de si mesma. 
A intolerável companhia que eu me faço. 
Preciso dos outros para não chegar àquele ponto 
altamente intolerável do encontro comigo. 
Eu sou exatamente: zero. E tanto se me dá. 
Conselho: fique de vez em quando sozinho, 
senão você será submergido. 
Até o amor excessivo dos outros 
pode submergir uma pessoa.

Clarice Lispector.

domingo, 8 de fevereiro de 2015

Já não me importo...

Já não me importo
Até com o que amo ou creio amar.
Sou um navio que chegou a um porto
E cujo movimento é ali estar.
Nada me resta
Do que quis ou achei.
Cheguei da festa
Como fui para lá ou ainda irei
Indiferente
A quem sou ou suponho que mal sou,
Fito a gente
Que me rodeia e sempre rodeou,
Com um olhar
Que, sem o poder ver,
Sei que é sem ar
De olhar a valer.
E só me não cansa
O que a brisa me traz
De súbita mudança
No que nada me faz.

Fernando Pessoa.

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2015

Menestrel...

Depois de algum tempo você aprende a diferença, a sutil diferença entre dar a mão e acorrentar uma alma. E você aprende que amar não significa apoiar-se. E que companhia nem sempre significa segurança. Começa a aprender que beijos não são contratos 
e que presentes não são promessas. Começa a aceitar suas derrotas com a cabeça erguida e olhos adiante, com a graça de um adulto e não com a tristeza de uma criança.
Aprende a construir todas as suas estradas no hoje, porque o terreno do amanhã é incerto demais para os planos, e o futuro tem o costume de cair em meio ao vão.
Depois de um tempo você aprende que o sol queima se ficar exposto por muito tempo.
E aprende que, não importa o quanto você se importe, algumas pessoas simplesmente não se importam… 
E aceita que não importa quão boa seja uma pessoa, ela vai feri-lo de vez em quando e você precisa perdoá-la por isso.  Aprende que falar pode aliviar dores emocionais.
Descobre que se leva anos para construir confiança e apenas segundos para destruí-la…
E que você pode fazer coisas em um instante das quais se arrependerá pelo resto da vida. 
Aprende que verdadeiras amizades continuam a crescer mesmo a longas distâncias.
E o que importa não é o que você tem na vida, mas quem você tem na vida.
E que bons amigos são a família que nos permitiram escolher.
Aprende que não temos de mudar de amigos se compreendemos que os amigos mudam… Percebe que seu melhor amigo e você podem fazer qualquer coisa, ou nada, e terem bons momentos juntos. 
Descobre que as pessoas com quem você mais se importa na vida são tomadas de você muito depressa… por isso sempre devemos deixar as pessoas que amamos com palavras amorosas;  pode ser a última vez que as vejamos. 
Aprende que as circunstâncias e os ambientes têm influência sobre nós, mas nós somos responsáveis por nós mesmos. 
Começa a aprender que não se deve comparar com os outros, mas com o melhor que pode ser.
Descobre que se leva muito tempo para se tornar a pessoa que quer ser, e que o tempo é curto. Aprende que não importa onde já chegou, mas para onde está indo… mas, se você não sabe para onde está indo, qualquer caminho serve. Aprende que, ou você controla seus atos, ou eles o controlarão… e que ser flexível não significa ser fraco, ou não ter personalidade, pois não importa quão delicada e frágil seja uma situação, sempre existem, pelo menos, dois lados. 
Aprende que heróis são pessoas que fizeram o que era necessário fazer,  enfrentando as consequências. Aprende que paciência requer muita prática.
Descobre que algumas vezes a pessoa que você espera que o chute quando você cai é uma das poucas que o ajudam a levantar-se. 
Aprende que maturidade tem mais a ver com os tipos de experiência que se teve e o que você aprendeu com elas do que com quantos aniversários você celebrou. 
Aprende que há mais dos seus pais em você do que você supunha.
Aprende que nunca se deve dizer a uma criança que sonhos são bobagens…
Poucas coisas são tão humilhantes e seria uma tragédia se ela acreditasse nisso.
Aprende que quando está com raiva tem o direito de estar com raiva, mas isso não te dá o direito de ser cruel.  Descobre que só porque alguém não o ama do jeito que você quer que ame não significa que esse alguém não o ama com tudo o que pode, pois existem pessoas que nos amam, mas simplesmente não sabem como demonstrar ou viver isso.
Aprende que nem sempre é suficiente ser perdoado por alguém…
Algumas vezes você tem de aprender a perdoar a si mesmo.
Aprende que com a mesma severidade com que julga, você será em algum momento condenado.
Aprende que não importa em quantos pedaços seu coração foi partido, o mundo não pára para que você o conserte. 
Aprende que o tempo não é algo que possa voltar. Portanto, plante seu jardim e decore sua alma, em vez de esperar que alguém lhe traga flores.
E você aprende que realmente pode suportar… que realmente é forte, e que pode ir muito mais longe depois de pensar que não se pode mais.  E que realmente a vida tem valor e que você tem valor diante da vida! 
Nossas dúvidas são traidoras e nos fazem perder o bem que poderíamos conquistar 
se não fosse o medo de tentar.

 Veronica A. Shoffstall

sexta-feira, 16 de janeiro de 2015

Eu quando olho nos olhos...

”Eu  quando olho nos olhos
Sei quando uma pessoa
Está por dentro
Ou está por fora.
Quem está por fora
Não segura
Um olhar que demora”.


Paulo Leminski.

sábado, 3 de janeiro de 2015

Começa hoje o ano...

Nada começa: tudo continua.
Onde estamos, que vemos a passar?
O dia muda, lento, no amplo ar;
Múrmura, em sombras, flui a água nua.
Vêem de longe,
Só nosso vê-las teve começar.
Em cadeias do tempo e do lugar,
É abismo o começo e ausência,
Nenhum ano começa. É eternidade!
Agora, sempre, a mesma eterna idade.
Precipício de Deus sobre o momento;
Na curva do amplo céu o dia esfria,
A água corre mais múrmura e sombria
E é tudo o mesmo e verbo e pensamento.

"Ficção de que começa alguma coisa!
Nada começa: tudo continua.

Na fluida e incerta essência misteriosa
Da vida, flui em sombra a água nua.
Curvas do rio escondem só o movimento.
O mesmo rio flui onde se vê.
Começar só começa em pensamento".


Fernando Pessoa.